Há alguns anos, as festas de rua conhecidas como “paredões” se tornaram um fenômeno em Salvador. São eventos onde carros com potentes “paredes” de som, semelhantes a trios elétricos, tocam madrugada adentro enquanto pessoas se aglomeram nas ruas. Apesar do clima festivo, esses eventos carregam uma face obscura: a organização, influência e patrocínio, na maioria das vezes, estão diretamente ligados às facções criminosas da cidade.
O crime organizado utiliza os paredões como ferramenta estratégica para ampliar o fluxo de consumidores de drogas ilícitas, principal produto negociado nesses locais. Mas o impacto vai além: as festas servem para demonstrar poder, comando e força perante facções rivais, evidenciando o controle absoluto da localidade. Além disso, são espaços propícios para o recrutamento de “soldados”, sobretudo jovens e adolescentes, para reforçar a guerra entre facções, bem como para consolidar o engajamento dos integrantes já existentes.
A situação se agrava com o surgimento de outros crimes nesses eventos, incluindo corrupção de menores e exploração sexual em vários níveis.
Bairros marcados pelas facções
Em Salvador, diversas localidades são conhecidas pelas grandes festas de paredão com forte influência do crime organizado. Exemplos incluem o Complexo do Nordeste de Amaralina, Engomadeira e Arenoso, áreas de atuação do Comando Vermelho (CV) e Saramandaia, dominada pelo Bonde do Maluco (BDM). Bairros como Liberdade e Fazenda Grande do Retiro, especialmente em seu largo principal, o “Rodão”, também são palcos frequentes desses eventos.

Crime organizado utiliza os paredões como ferramenta estratégica | Foto: Reprodução / Redes Sociais
Cerco ao tráfico: operações e prisões
A Polícia Civil da Bahia tem intensificado o cerco ao tráfico de drogas por meio de operações específicas contra as festas do tipo “paredão”. Coordenadas pelo Departamento Especializado de Investigação e Repressão ao Narcotráfico (Denarc), as ações resultaram na prisão de mais de 20 suspeitos entre junho e meados de julho, além da apreensão de cerca de 30 quilos de entorpecentes.

Suspeitos continuam sendo monitorados. | Foto: Reprodução / Polícia Civil
Segundo a polícia, as festas são frequentemente organizadas ou financiadas por facções criminosas. Investigações com apoio da inteligência e tecnologias de monitoramento vêm identificando suspeitos, que continuam sendo monitorados.
Um dos destaques recentes foi o cumprimento de mandado de prisão no bairro Vila Ruy Barbosa, contra um traficante com histórico criminal e condenação anterior. No local usado como ponto de venda, a polícia apreendeu uma pistola 9mm, munições, balanças de precisão, cocaína e dinheiro em espécie.
“Muito além de festas irregulares”
Para detalhar essas ações e o impacto dos paredões no cenário criminal, o Portal A TARDE entrevistou o Delegado Geral de Operações da Polícia Civil, Jorge Figueiredo. Ele é o responsável por coordenar o trabalho operacional da polícia na repressão a esses eventos e no combate às facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas. Figueiredo explicou como as festas do tipo paredão vão muito além de simples eventos irregulares, funcionando como palco estratégico para demonstração de poder e recrutamento de jovens.
“A gente tem buscado fazer o enfrentamento com firmeza com relação a esses eventos, conhecidos popularmente como paredões. Eu sempre digo que são festas que vão muito além de festas irregulares. Por trás dessas festas, além do tráfico de drogas, há outras práticas delituosas. As facções acabam promovendo esses eventos, buscando criar um ambiente favorável para recrutamento, criando um falso sentimento de pertencimento, estimulando o engajamento e utilizando esse ambiente também para fazer uma demonstração clara de domínio territorial”.
Inteligência e tecnologia
“A Polícia Civil, através da inteligência, de tecnologias e de técnicas de investigação, vem realizando investigações mais precisas, mais efetivas, buscando identificar quem são as pessoas que fornecem droga para essa localidade, para essas festas, buscando fragilizar aquela facção local. Só o Denarc, nos últimos 30 dias, efetuou a prisão de mais de 20 traficantes envolvidos com essas festas, além de apreensões de drogas. E uma coisa que eu gosto sempre de registrar é que a Polícia Civil, nos últimos 4 meses, com esse emprego de tecnologia, já identificou 46 lideranças criminosas. Todas elas já estão presas. Dessas 46, de 10 a 12 delas, a gente foi buscar em outros estados, a exemplo do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, Ceará”.

Polícia continua realizando investigações buscando identificar suspeitos | Foto: Reprodução / Polícia Civil
Figueiredo explica que o objetivo é identificar não só os criminosos, mas os locais estratégicos que servem como palco para esses eventos:
“Em especial nesse trabalho relacionado aos eventos, a gente vem utilizando muito a tecnologia. E posso registrar aqui a utilização de drones. Nós temos equipes que fazem um levantamento antecipado desses locais, no sentido de conhecer como é aquele modus operandi daquela festa. Identificar quem são aquelas pessoas que, naquele ambiente, a gente consegue perceber como tendo uma participação preponderante, que dá para perceber que são quem está organizando, quem está promovendo, justamente para que a gente possa alcançar, de forma cirúrgica, quem são os membros das facções que estão diretamente envolvidos com essas festas conhecidas como paredões”.
O foco na lavagem de dinheiro
Ele reforça a importância do trabalho contra a lavagem de dinheiro para desarticular financeiramente as facções:
“E é sempre bom lembrar que um dos pilares da atual gestão da Polícia Civil é justamente a questão de lavagem de capitais. Não dá para você estar focando só na prisão dos membros das facções; não dá para focar tão somente na apreensão de drogas, se você não faz um trabalho direcionado para a questão da lavagem de dinheiro. Ou seja, hoje a gente está buscando também identificar o caminho do dinheiro, o rastro do dinheiro, com o objetivo de asfixiar financeiramente esses grupos criminosos e, dessa forma, desarticular essas facções que estão atuando em determinadas áreas aqui da capital”.
Mapeamento
Além disso, o delegado detalha o trabalho de mapeamento para identificar as localidades onde esses eventos estão ligados diretamente ao tráfico:
“É justamente esse trabalho que a gente está realizando: não só identificando as pessoas, mas identificando as localidades. Quais são aquelas localidades em que os paredões possuem uma relação direta com o tráfico de drogas, com as facções criminosas. Esse trabalho é um trabalho de mapeamento, óbvio, um trabalho de inteligência que carece de um esforço minucioso. A gente tem, não só a parte de infiltração, como também esse levantamento aéreo para entender como acontecem esses paredões”.
“A gente tem um trabalho de inteligência, através de técnicos de inteligência, que é robustecido justamente para produzir um conhecimento e, aí sim, a gente chegar de forma mais precisa e cirúrgica naqueles que lideram esses movimentos”.
Cautela e sensibilidade
Ele também comenta sobre o desafio de agir com cautela, respeitando a presença de cidadãos de bem e menores nas festas:
“Acaba sendo uma ação delicada, pois a gente sabe que, naquele contexto, há cidadãos de bem daquela localidade, há menores, há adolescentes, há idosos. Então, tem todo um trabalho. Por isso que a gente não chega fazendo uma ação repressiva, um trabalho ostensivo de chegar acabando com a festa, viaturas fechando a festa — porque a gente sabe que ali é uma situação delicada. A gente, como representante do Estado, tem que ter cautela, o cuidado de entender que, naquele cenário, não se encontram apenas pessoas ligadas à criminalidade.”
“Então, primeiro a gente tenta identificar, tenta entender aquela situação: quem é a facção que atua, quem é a liderança que está à frente, quem são os membros, de onde vêm. É como eu te falei: tem tráfico de drogas? Tem. Tem outras práticas de crime? Tem. Mas a gente sabe que, nesse contexto, o que está sendo enraizado ali é justamente a cultura do crime”.
“É o recrutamento, para que pessoas adentrem a facção criminosa. É criar aquele sentimento de pertencimento, de engajamento com os adolescentes, que ali são os alvos mais sensíveis, mais frágeis. Então tem todo um trabalho que é realizado de mapeamento para que a gente, em um outro momento, de forma mais precisa, efetiva e eficaz, possa realmente desarticular esses grupos criminosos que atuam nessas localidades”.