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Professores da EJA revelam os desafios e encantos de ensinar jovens e adultos

Professores da EJA revelam os desafios e encantos de ensinar jovens e adultos

Foto: Jefferson Peixoto / Secom PMS


À noite, quando a cidade começa a desacelerar, a Escola Municipal Senador Antônio Carlos Magalhães, localizada na Avenida Vasco da Gama, no bairro do Acupe de Brotas, ganha uma nova vida. As salas, iluminadas, abrigam histórias que se cruzam, vozes que se erguem e sonhos que renascem. Ali, cerca de 60 estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) retomam a trajetória escolar interrompida em algum ponto do passado. São trabalhadores, donas de casa, jovens e idosos que, após longas jornadas, voltam a sentar-se diante de um caderno em branco, símbolo de um recomeço possível.

A EJA, modalidade oferecida pela Prefeitura de Salvador por meio da Secretaria Municipal da Educação (Smed), garante a conclusão do ensino fundamental, da alfabetização ao 9º ano, para quem não pôde estudar na idade regular. Mais do que uma política educacional, ela representa um projeto de dignidade e esperança, resgatando o direito à aprendizagem e o sentimento de pertencimento.

Para a diretora Ivone Carlos, o papel da EJA vai muito além do ensino formal. “O trabalho com a EJA é muito relevante para a gente, mas é ainda mais relevante para os estudantes. São pessoas que, por algum motivo, não cursaram a escola no tempo certo. Muitos trabalham o dia inteiro e estudam à noite. É uma oportunidade de reconstruir caminhos”, afirmou.

Ela reconhece que manter os alunos motivados é um dos maiores desafios. “O aluno da EJA desiste com facilidade. Às vezes, ele se cansa, enfrenta problemas pessoais, e cabe à escola mostrar que esse espaço é importante para a vida dele. Quando ele percebe que a escola é um lugar de acolhimento, tudo muda”, acrescentou.

ACOLHIMENTO – A rotina dos estudantes é exigente. O dia começa cedo, entre o trabalho e as responsabilidades familiares, e termina à noite, em meio a livros, colegas e professores. Mesmo cansados, chegam à escola com vontade de aprender — e de serem ouvidos. “Temos jovens de 16 anos e senhoras de até 70. Nosso compromisso é manter uma escola organizada, com recursos, que incentive e motive o aluno a permanecer. Essa sensação de pertencimento faz toda diferença”, ressaltou Ivone.

Ela destaca que a escola precisa ir além da função pedagógica: deve ser um espaço de cuidado, escuta e empatia. “São pessoas que trazem bagagens de vida muito diversas. O trato, o cuidado, o olhar atento, tudo isso conta. A escola precisa ser esse lugar de confiança e de acolhimento, onde o aluno se sinta respeitado e valorizado.”

Foto: Jefferson Peixoto

A professora Lícia Tereza Cajazeira Maia conhece de perto os desafios e as recompensas de atuar nessa modalidade. Há 20 anos na EJA, ela aprendeu que educar adultos exige uma combinação de paciência, sensibilidade e criatividade. “Quando conheci a EJA, me apaixonei, porque é totalmente diferente de ensinar crianças. Aqui temos adolescentes, adultos e idosos, cada um com um ritmo e um objetivo próprio. Eu precisei aprender como encantar esse público, porque, se o professor não encantar, o aluno não fica”, contou.

O primeiro passo, segundo Lícia, é entender quem é o aluno e o que o motiva a estar ali. “Tem gente que quer aprender a ler a Bíblia, outro quer entender as legendas de um filme, outro quer reconhecer as letras nas placas da rua. Cada um tem um motivo para estar aqui. Eu sempre pergunto no início do ano o que cada um deseja aprender. O ensino parte desse desejo, dessa necessidade”, explicou.

Lícia adota uma metodologia baseada em temas do cotidiano, aproximando o conteúdo escolar da realidade do aluno. “Uso jornal físico toda semana. Eles precisam entender o mundo, saber o que é fake e o que é verdade. Também trabalhamos o letramento digital, para que aprendam a pesquisar, digitar, identificar sites confiáveis. Eles se sentem valorizados quando percebem que conseguem usar o computador, ler uma manchete ou entender uma notícia. Isso é libertador”, afirmou.

DESAFIOS – A professora reconhece que nem tudo é simples. As dificuldades vão muito além do ensino. “Muitos alunos têm problemas de saúde e não conseguem atendimento adequado. Outros enfrentam situações de violência ou moram em áreas de risco. Isso interfere diretamente no aprendizado. Há noites em que a gente precisa encerrar mais cedo, porque o aluno não pode chegar tarde em casa. A violência, infelizmente, é uma realidade que afeta a permanência deles na escola”, lamentou.

O professor José Messias Silva, com mais de duas décadas de sala de aula — sendo dez anos dedicados à EJA —, confirma essa realidade. “A violência é uma grande preocupação. Não que ela chegue à escola, mas muitos alunos precisam sair mais cedo por medo. Eles dizem: ‘Meu bairro está perigoso, não posso chegar depois das 21h’. As aulas vão até 21h50, mas, por segurança, muitas vezes liberamos antes. É um desafio que dói, porque sabemos que cada minuto de aula faz diferença para quem lutou tanto para estar aqui”, relatou.

TRANSFORMAÇÃO – Apesar das dificuldades, Messias vê na EJA um espaço de transformação social e pessoal. “O que me motiva é justamente isso: poder contribuir com essa reparação. São pessoas que não conseguiram estudar na idade certa e agora estão tendo uma nova chance. Trabalhar com a EJA é trabalhar com histórias de superação”, refletiu.

Professor de Artes, ele transforma a experiência de vida dos alunos em matéria-prima para o aprendizado. “Na EJA, conseguimos aproveitar a bagagem de cada um. Essa troca é muito rica. Eu aprendo com eles todos os dias”, contou. Para ele, cada conquista é uma vitória coletiva. “Ver um aluno que mal sabia escrever o próprio nome conseguir redigir um bilhete ou uma carta é emocionante. Lembro de uma aluna de 74 anos que perdeu a irmã e, mesmo assim, foi à escola porque dizia que ali se sentia acolhida. Isso mostra o quanto esse espaço é essencial. Eles encontram aqui não apenas aprendizado, mas companhia, escuta e afeto.”

A diretora Ivone reforça que a escola e os professores trabalham juntos para evitar a evasão escolar, um dos maiores desafios da modalidade. “A gente liga, faz busca ativa, tenta entender o motivo da ausência. Às vezes é cansaço, medo, doença ou até falta de dinheiro para o transporte. Cada caso é um caso. Mas sempre tentamos trazer o aluno de volta, mostrar que desistir não é o caminho”, explicou.

Além disso, o corpo docente investe em ações pedagógicas e culturais para manter o interesse dos estudantes. Projetos interdisciplinares, oficinas e visitas externas fazem parte da rotina. “Levamos os alunos ao teatro, a museus, a eventos culturais. Eles ficam encantados, porque muitos nunca tiveram a chance de vivenciar isso. Quando voltam, trazem novas perguntas, novas curiosidades. É lindo ver o brilho nos olhos deles”, contou o professor Messias.

APRENDIZADO – Os educadores concordam que ensinar na EJA é uma experiência transformadora não só para os alunos, mas também para quem ensina. “Fica evidente que o trabalho com a EJA exige muito mais do que planejamento e didática. É um exercício diário de sensibilidade. O professor precisa olhar para o aluno como alguém que não apenas quer aprender, mas que também busca se reconhecer como sujeito de direitos, de voz e de possibilidades”, destacou Messias.

A cada noite de aula, o que se vê nas salas da EJA é um retrato da persistência e da esperança. Alunos e professores compartilham o mesmo objetivo: reconstruir trajetórias e provar que nunca é tarde para aprender. Como resume a diretora Ivone, “a EJA é uma segunda chance, e talvez a mais bonita de todas, porque é construída com esforço, coragem e fé no poder da educação”.

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