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Análise: As (cinco) principais crises do papado de Bento XVI

Análise: As (cinco) principais crises do papado de Bento XVI


Primeiro papa a renunciar em quase 600 anos, Joseph Ratzinger morreu aos 95 anos neste sábado (31). Papa emérito Bento XVI participa de cerimônia no Vaticano, em imagem de 8 de dezembro de 2015
Gregorio Borgia/ AP
Intelectual renomado e teólogo profícuo, Bento XVI entrou para a história como o primeiro Papa da era moderna a renunciar. Antes dele, foi Gregório XII, em 1415, em circunstâncias bem diferentes: à época havia uma disputa pelo trono do apóstolo Pedro entre vários “pretendes”. Um gesto político, a renúncia de quase 600 anos atrás permitiu unificação em torno de um outro líder. Já Bento XVI, ao anunciar sua renúncia, em 11 de fevereiro de 2013, fez questão de dizer que seu caso era novo.
Ele deixou o ministério por falta de vigor, “seja do corpo, seja do ânimo”, necessários para lidar com os problemas na “barca de Pedro”, disse, acrescentando que tomava essa decisão em total liberdade de consciência.
O legado de Bento XVI será estudado por muitos anos. Na Igreja, ele será lembrado como um papa fiel, discreto, cordial e de muita profundidade espiritual e intelectual. Ofereceu textos, discursos e reflexões sobre Deus, a fé e a cultura moderna que devem orientar os sucessores por muitos anos.
Muito se especulou, no entanto, sobre qual teria sido o peso, na decisão histórica de Joseph Ratzinger, das crises que ele teve que enfrentar ao longo de seu pontificado. As crises que ele enfrentou ao longo de quase oito anos marcaram o seu estilo e podem ter orientado a decisão de renunciar. Abaixo, em cinco pontos, veja as principais:
O caso ‘Vatileaks’
Os abusos sexuais
O discurso de Ratisbona e a relação com muçulmanos
Tensões na América Latina
O cisma dos ultra-conservadores
A Igreja após-renúncia de Bento XVI quebrou tabus, pois não precisava lamentar a morte de um papa. Abriu-se, de imediato, um amplo diálogo, interno e externo, que durou semanas, sobre os problemas, a necessidade de reforma e sobre o perfil do sucessor. Aquela fase de transição permitiu a eleição de um papa reformista, diferente, Francisco. O vínculo de continuidade entre os papas Bento XVI e Francisco, portanto, é indiscutível. Ambos enxergavam que era preciso renovar a Igreja e o Vaticano.
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1 – O caso ‘VatiLeaks’
No início de 2012, uma série de documentos confidenciais do papa e do Vaticano foram vazados para a imprensa. Foi o escândalo dos “Vatileaks”, uma referência à organização internacional “Wikileaks”, especializada no acesso a documentos sigilosos. O caso revelou lutas de poder entre cardeais e corrupção na Cúria Romana, com especulações até mesmo sobre a morte do papa.
A primeira parte dos Vatileaks mostrava desvios e falhas no chamado “banco do Vaticano”, cujo nome oficial é Instituto para as Obras de Religião (IOR). Descobriu-se que os documentos foram roubados pelo mordomo do papa, Paolo Gabriele – detido e julgado em 2012, mas depois perdoado por Bento XVI.
Ao menos 20 pessoas estiveram envolvidas, chamados de “corvos”, mas nunca ficou claro quem eram e como atuaram. Há aspectos do escândalo tratados apenas como boatos; indiscrições de caráter financeiro e sexual, além de comportamentos não necessariamente criminosos, mas tidos como imorais.
Numa segunda fase do Vatileaks, desenrolada já no pontificado de Francisco, foram detidos e julgados o monsenhor espanhol Lucio Angel Vallejo Balda, e a administradora italiana Francesca Immacolata Chaouqui, da área financeira do Vaticano. Eles também foram condenados e perdoados, em parte, pelo Papa Francisco, pelo vazamento de documentos.
O Papa Bento XVI, em maio de 2012, disse que o escândalo lhe causou “tristeza no coração”, mas que confiava em seus colaboradores e no Espírito Santo.
“Multiplicaram-se, todavia, ilações amplificadas por alguns meios de comunicação, de todo gratuitas, que foram bem além dos fatos, oferecendo uma imagem da Santa Sé que não corresponde à realidade”, afirmou à época. Ele declarou que as questões haviam sido resolvidas ainda em seu governo.
2 – Os abusos sexuais
Bento XVI teve que lidar com uma das maiores chagas na história da Igreja Católica, uma onda de casos de abusos morais, de poder e sexuais perpetrados por membros do clero ao longo de décadas, a partir da segunda metade do século 20. Casos notáveis, ainda que antigos, vieram à tona durante o seu pontificado.
Entre eles, o do padre Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, congregação fundada sob Paulo VI e que teve de ser reestruturada por Bento XVI. Maciel vivia múltiplas identidades, tinha amantes, usava drogas e, segundo as investigações, teria abusado de mais de uma centena de pessoas ao longo da vida, entre homens e mulheres. Em 2006, como papa, Bento XVI o afastou da vida pública. Maciel morreu em 2008, aos 87 anos, distante de suas obras e rompido com a Igreja, mas sem nenhuma punição formal.
No tema dos abusos, reconhece-se que Bento XVI deu passos importantes: em 2001, ele colocou esses casos sob os cuidados da Congregação para a Doutrina da Fé, que ele mesmo liderava, ainda como cardeal – e ali começou a investigar o caso Maciel. Também aumentou a gravidade e a pena dos crimes contra menores de 18 anos.
Ele foi o primeiro Papa a pedir perdão publicamente pelo problema “sistêmico” dos abusos de menores e pessoas vulneráveis, após escândalos na Irlanda, em 2010; ele exigiu, em 2011, que todos os bispos seguissem diretrizes unificadas para investigar suspeitas; ele fundou, em 2012, um centro de estudos na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma; também foi o primeiro Papa a se encontrar com vítimas de abuso com frequência, como em Malta, em 2010, e foi o primeiro a afastar padres acusados de abusos. No fim de seu pontificado, havia “demitido” quase 400 sacerdotes predadores.
A gestão do problema perdura, outros casos vieram a público sob Francisco, e há questionamentos sobre o que mais poderia ter sido feito nos anos em que o então cardeal Ratzinger era responsável pela Doutrina da Fé, no pontificado o Papa João Paulo II, e o que deixou por fazer como pontífice.
3 – O discurso de Regensburg e a relação com muçulmanos
Um dos momentos mais complicados dos oito anos de pontificado de Bento XVI foi em setembro de 2006, quando fez um discurso na Universidade de Regensburg, na Alemanha. Em uma aula magistral, o papa fez uma citação que provocou revolta no mundo islâmico.
Seu objetivo era refletir sobre fé e razão, as relações entre as religiões e a não violência. O ponto central era dissociar a religião da violência, denunciando a instrumentalização da fé.
“A violência está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma”, afirmou Bento XVI, na ocasião. Para ilustrar seu argumento, citou o imperador bizantino Manuel II Paleólogo (1350-1425), que teria tido um diálogo com um persiano, quando disse: “Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas, tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava.”
O discurso não foi bem recebido na comunidade muçulmana nem entre autoridades do mundo islâmico, como no Irã. A relação com o Islã jamais foi totalmente restabelecida em seu pontificado – Francisco conseguiu retomá-la.
Até mesmo católicos envolvidos no diálogo com os muçulmanos consideraram infeliz a citação de Bento XVI. Ele tentou justificar: “Essa citação foi entendida, infelizmente, como expressão da minha posição pessoal, suscitando, assim, uma compreensível indignação. Espero que o leitor do meu texto possa entender imediatamente que essa frase não exprime a minha avaliação pessoal frente ao Alcorão, para o qual tenho o respeito que é devido ao livro sacro de uma grande religião.”
Seu objetivo, afirmou, “era evidenciar a relação essencial entre fé e razão”. O mal-entendido causado pelo discurso de Regensburg, contudo, estimulou encontros e publicações partilhadas entre católicos e muçulmanos, no Vaticano e em outras partes do mundo.
4 – Tensões na América Latina
Ao longo de seu pontificado, Bento XVI enfrentou significativa resistência entre alguns grupos católicos na América Latina, inclusive no Brasil. Isso porque essa região do mundo é o berço da chamada “Teologia da Libertação”, uma vertente teológica voltada para a defesa dos mais pobres, os movimentos sociais e a ação social e política de membros da Igreja.
A Teologia da Libertação encontra nos pobres o “Cristo encarnado”. Ela tem braços diferentes nos países latino-americanos e em alguns deles – não todos – nos anos das ditaduras militares do século 20, abraçou categorias do marxismo, como o materialismo, a luta de classes e a militância da revolução armada.
Joseph Ratzinger era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé durante o pontificado do Papa João Paulo II e, por isso, ficou marcado na América Latina como algoz da Teologia da Libertação. Em tempos de Guerra Fria, o papa polonês enxergava nessa linha de pensamento um perigo de entrada do comunismo na Igreja latino-americana. Entre as obras condenadas pelo Vaticano, à época, esteve o livro “Igreja: Carisma e Poder”, de 1981, do teólogo brasileiro Leonardo Boff, que foi impedido de falar em nome da Igreja.
Com esse histórico, a eleição de Bento XVI, em 2005, deu calafrios em muitos latino-americanos. Essa foi uma relação estremecida do começo ao fim.
A viagem apostólica ao Brasil, em 2007, foi em grande parte um gesto de reconciliação entre o Papa Ratzinger e a igreja latino-americana. O principal objetivo de sua visita foi a abertura da chamada “Conferência de Aparecida” – oficialmente a 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe (Celam). Curiosamente, o relator do documento final dessa conferência foi Jorge Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires.
No voo rumo ao Brasil, comentou que os tempos eram outros e que a Teologia da Libertação já não era um problema, mas que o papel da Igreja era o de responder a uma “sede de Deus” presente no povo latino-americano. O discurso de Bento XVI em Aparecida foi histórico.
No evento em Aparecida, ele disse: “O sistema marxista, onde governou, deixou não só uma triste herança de destruições econômicas e ecológicas, mas também uma dolorosa opressão das almas. E o mesmo vemos também no Ocidente, onde cresce constantemente a distância entre pobres e ricos e se produz uma inquietadora degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis ilusões de felicidade.”
5 – O cisma dos conservadores
Considerado por muitos um papa conservador, Bento XVI fez inúmeros gestos de conciliação para católicos ultraconservadores que não estavam em plena comunhão com o resto da Igreja. E isso, muitas vezes, provocou reações negativas entre outros grupos da Igreja e na comunidade judaica.
Entre essas crises esteve a dos chamados “lefebvrianos”, seguidores do arcebispo Marcel Lefebvre (1905-1991), fundador da Fraternidade São Pio X. Em 1988, ele ordenou quatro bispos sem a autorização do papa. Isso, conforme as leis da Igreja, leva à excomunhão automática dos envolvidos. Além disso, esse grupo, como outros dissidentes, não aceitam as reformas do Concílio Vaticano II, que promoveu uma atualização da Igreja, nos anos 1960.
Em 2009, Bento XVI decidiu perdoar os bispos, convidando-os a entrar em plena comunhão com a Igreja. Ele queria acabar com o “escândalo da divisão”.
Um desses bispos, porém, era antissemita. O inglês Richard Williamson negou o holocausto e outros fatos ligados à perseguição dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Isso provocou uma crise com a comunidade judaica e o Estado de Israel. Além disso, bispos de todo o mundo se indignaram com Bento XVI, que foi obrigado a escrever uma carta de esclarecimento. Posteriormente, Williamson, foi afastado da Igreja.
“Um convite à reconciliação com um grupo eclesial envolvido num processo de separação traduziu-se assim no seu oposto: um aparente retrocesso em relação a todas as etapas de reconciliação entre cristãos e judeus percorridas desde o Concílio”, escreveu Bento XVI.
Outra abertura de Bento XVI aos tradicionalistas foi autorizar, em 2007, a celebrar a missa com o rito anterior ao Concílio Vaticano II, dentro de algumas condições. A crise com os lefebvrianos, que continuam em cisma parcial, e com outros dissidentes tradicionalistas foi carregada ao pontificado de Francisco. Ele exige que aceitem o Concílio e, nessa linha, reverteu algumas decisões, em parte ou totalmente.
As crises durante o pontificado de Bento XVI foram, talvez, dificultadas pelo fato de ele não ter sido um grande carismático nem um clássico gestor, características que, em entrevistas no fim da vida, ele mesmo admitiu não ter.
Por causa dessas crises, sua difícil relação com a imprensa internacional de linha mais liberal e progressista, foi turbulenta, fazendo com que ele se tornasse um papa pouco popular entre dois muito midiáticos – João Paulo II e Francisco.
* Filipe Domingues (Twitter @filipedomingues e Instagram @_filipedomingues) é jornalista, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Gregoriana, vice-diretor do Lay Centre em Roma

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