Fato Verdade

Terapia em cama de brega

Terapia em cama de brega

Entardecia quando os cinco ocuparam a mesa. O sol despejava raios paralelos, alaranjados, que desfaleciam nas fachadas descascadas dos prédios do centro feirense. Cumprimentos ruidosos, abraços, a cerveja gelada para tanger o calor persistente, que não arrefecia. A gerente do bordel puxou cadeira e sentou, entretendo os bebedores. Para orientar quem lê, esclareça-se que a mesa que ocuparam ficava num bordel, o popular “brega” do irreverente vocabulário do feirense. Eram bebedores – a propósito – porque passaram por lá só para beber a saideira, despedir-se antes de encarar a ressaca no domingo.

Um – talvez fustigado pela atmosfera lúbrica – foi logo elencando proezas sexuais, enumerando feitos, enquanto o olho bêbado pousava nas gravuras do artista renomado que avivavam as paredes; Outro lançava olhares de soslaio, farejando as presenças das meninas; outro entrevistava a gerente – era jornalista – ávido por detalhes picantes do negócio. Os demais dedicavam-se aos copos plásticos nos quais a cerveja descansava.

-Tem cliente que vai pro quarto com as meninas, mas não faz nada. Desabafa. Elas ouvem, às vezes aconselham, então eles vão embora. Pagam e saem – explicou a gerente, ar didático e gestos enfáticos.

O comentário dissipou um pouco a bebedeira, despertou a curiosidade da plateia. Aquilo era mais comum do que se supunha, advertiu. Traquejada com o intenso convívio humano – a clientela, as garotas, os beberrões – espantava-se com aquelas trágicas manifestações de solidão em meio à multidão:

-O cidadão não tem um amigo para desabafar! Então vem aqui, conversa, depois vai embora, mais aliviado – acrescentou, descrevendo uma espécie de terapia.

As cobranças e pressões vem de todos os lados: da mulher, dos filhos, do trabalho, da sogra, dos irmãos, dos pais, dos amigos. Sozinho, amargurado, o cidadão sai do trabalho e vai desabafar com quem não o conhece, até para não se comprometer. “É uma espécie de terapia, não deixa de ser”, vaticinou alguém, na mesa, depois de mais um gole de cerveja.

Aquilo, a princípio, até pareceu piada. Mas não era. No ar, pairou uma sensação desconfortável, todo mundo recorreu à cerveja nos copos para dissipar o mal-estar. Mesmo assim, a energia daquelas solidões trágicas, mudas, teimou. A existência convencional – rotineira, chata, protocolar, burocrática – reserva muitos dissabores que é necessário sufocar, reprimir. No limite, o sujeito – o tipo normal, careta – vai desabafar no puteiro, desfiar suas dores diante da desconhecida que aluga o corpo. Falta-lhe até um amigo para ouvir suas confidências! Que miséria!

Lá fora, as sombras se adensavam. Impossível, naquele fim de tarde de sábado, não recorrer a clichês para assimilar aqueles dramas imaginados. No absurdo, recorre-se a Nelson Rodrigues, cujos dramas surreais, desconcertantes, conectam-se à realidade que todo mundo ignora. Não, Nelson Rodrigues não foi citado naquela tarde ardente, não pairou sobre as mesas plásticas de cervejaria. Soaria pedante, discrepava do ambiente.

Esvaziaram os copos, saíram, enveredaram por outros assuntos, combinaram mais uma saideira para adiante, mas a imagem dos sujeitos deitados – devidamente vestidos – desabafando em leito de puteiro porque não tinham com quem trocar ideias – externar suas dores – permaneceu dançando no ar, mesmo sob a iluminada Senhor dos Passos, sob a agitada Getúlio Vargas, sob o bulício da Praça de Alimentação…

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